quarta-feira, 19 de agosto de 2009

FOLCLORE


Não é bem assim

Por sua natureza de difícil delimitação, o folclore é um campo fértil para a formação de clichês. De tanto ser repetidas, algumas ideias sobre o assunto acabam entendidas como verdades. Selecionamos algumas delas e, revendo conceitos, procuramos quebrá-las. Para tal, contamos com a assessoria de Alberto Ikeda, professor de cultura popular e etnomusicologia da UNESP.
Folclore são apenas mitos e histórias

O folclore – ou cultura popular tradicional – vai muito além disso.

São saberes que alcançam todas as expressões, conhecimentos e costumes dos grupos humanos, desde que tenham algumas características.

Eles devem:
1) ser de domínio e prática coletiva,

2) transmitir-se no convívio social geralmente por meios não-formais de ensino e aprendizagem (eventualmente transformando-se nesse processo),

3) ter presença ao longo de um período histórico e chegar aos dias atuais.

Algumas práticas podem ser restritas a um âmbito local ou regional, mas outras podem ser quase universais, difundindo-se por um amplo território ou aparecendo concomitantemente em mais de uma localidade. A cerâmica, por exemplo – que é o uso do barro para o artesanato utilitário – aparece em um número enorme de grupos sociais. Nas diferentes comunidades, há particularidades na técnica de manuseio do barro e na sua transformação em cerâmica, mas, de maneira geral, o processo é semelhante.

O folclore só existe em comunidades rurais

As comunidades rurais geralmente têm expressões do folclore muito presentes em sua vida cotidiana. Mas isso não significa que as urbanas vivam apartadas das culturas populares tradicionais. Além do repertório das regiões interioranas ter chegado à cidade com o êxodo rural – e ali, muitas vezes, ter se modificado –, diversas manifestações surgem no próprio contexto urbano, como brincadeiras (de elástico, por exemplo), lendas (quem não conhece a da loira do banheiro?) e procedimentos de comunicação (como escrever em banheiros públicos, um costume encontrado até na Roma Antiga).

Para que alguma manifestação cultural seja considerada folclore, não se pode atribuir uma autoria pessoal a ela

Nem todas as expressões folclóricas têm autoria desconhecida. Como a maioria delas tem origem remota, é comum que a identidade do autor se perca ao longo do tempo. Mas nada impede que a obra de um artista conhecido, por exemplo, que alcance domínio público em uma comunidade e tenha usos sociais nesse contexto – virando uma tradição para muita gente – seja considerada folclore. Com o passar dos anos, a comunidade pode continuar sabendo que determinada obra foi criação desse artista ou a informação pode se perder. O que importa é que as pessoas a entendam como algo que faz parte da sua vida e de seu grupo social. A prática dos figureiros de Caruaru, por exemplo, que fazem seus bonecos à maneira de Mestre Vitalino, criador de um estilo característico, podem se enquadrar como expressões do folclore.

Como o folclore é transmitido pela cultura oral, nada que seja escrito faz parte dele

Há poucas décadas no Brasil, a leitura e a escrita ainda eram restritas às elites. Assim, as tradições da zona rural, que concentrava a maior parte da população, eram transmitidas oralmente. Isso não quer dizer que o registro e a difusão por meio da escrita – assim como as expressões próprias da cultura letrada – não possam ser considerados folclore. A literatura de cordel, que tem histórias e versos conhecidos pela gente, é um exemplo disso, assim como as frases de para-choque de caminhão, as formulações para não se vender fiado e os epitáfios nos túmulos.

O folclore só se constrói em contextos sociais de pouca escolaridade

Qualquer pessoa, por mais escolarizada que seja, traz um legado de saberes e costumes oriundos de tradições de seu contexto familiar e social. O que geralmente ocorre é que esses saberes tradicionais pautam mais a vida de pessoas de baixa escolaridade do que aquelas que têm acesso a informações científicas e a uma pluralidade de “modos de fazer”. O principal aspecto relativo a este ponto é não opor os saberes tradicionais à ciência em um sentido de comparação, pois eles são de ordens e usos distintos, e dependem sempre das crenças pessoais e culturais de cada indivíduo. Remédios caseiros, como chás para tosse ou de camomila para acalmar, por exemplo, têm suas receitas levadas adiante na tradição e são utilizadas até hoje por pessoas das mais variadas escolaridades.

As manifestações folclóricas são fixas e não se modificam nunca

Embora os saberes ditos folclóricos tendam a se preservar por um longo tempo, as transformações são inerentes a qualquer manifestação humana. Como o folclore é apropriado pela gente e transmitido em seus contextos de uso social, é natural que se adapte e se modifique com o passar do tempo. Com as migrações, o aumento da velocidade e intensidade de troca de informações, as novas tecnologias, os modos de vida mudaram.


Nesse processo, as expressões tradicionais só sobrevivem se continuarem a fazer sentido para as pessoas. A dança da quadrilha caipira, por exemplo, já sofreu muitas modificações em sua coreografia desde o século 19. Da mesma forma, seus comandos mudaram: antigamente o “para a frente”, se dizia “anavam”, o “para trás”, “anarriê” e o “gire” era “tur”. Isso porque eles se referiam aos termos em francês que os originaram (“en avant”, “en arrière” e “tour”). A maioria das pessoas sequer sabia de onde eles vinham e, ao longo dos anos, os temos em português tomaram o lugar dos “neologismos” na dança.


Na escola, só é possível trabalhar com folclore no mês de agosto ou em datas de festas populares

A cultura popular deve ser reconhecida pela escola, trazida para as discussões em sala de aula e considerada em práticas como a merenda e as reuniões de pais. As mais diversas expressões folclóricas se manifestam no ambiente escolar, mas passam despercebidas ou são até mesmo desaprovadas nesse contexto. Brincadeiras (amarelinha, brincadeira de taco, pega-pega, etc.), hábitos de alimentação (comer manga com feijão, farinha em todas as refeições, misturas de diferentes tipos de ingredientes em um só prato) e datas comemorativas (como o dia de São Cosme e São Damião): tudo isso está presente na vida das crianças e é, direta ou indiretamente, incorporado ao ambiente escolar. Considerar os saberes que as crianças trazem de seus contextos culturais pode levantar diversos elementos do folclore. Um aspecto importante é valorizar esse conjunto de expressões e saberes, e não tratá-los como “crendices” a serem abandonadas. Além disso, a escola pode propor projetos voltados para o estudo de diferentes aspectos das culturas populares. Quando se pensa nisso como algo presente na vida de todos nós, não se corre o risco de tratar outros costumes e expressões culturais como algo exótico e distanciado da realidade.

O folclore deve ser trabalhado apenas nas aulas de arte

Outra ideia equivocada sobre folclore é que ele se limita a expressões artísticas e que, com isso, a disciplina de Arte seria a única em que faria sentido abordá-lo. As culturas populares dizem respeito aos mais diversos aspectos da vida de um grupo social – entre eles, suas expressões artísticas. Mas muito se relaciona a cuidados com o corpo (com remédios caseiros e precauções para não adoecer), uso da língua (ditados e parlendas), técnicas de preparação de alimentos (receitas e ocasiões em que se come um determinado prato, como milho assado e canjica nas festas juninas), brincadeiras de movimento (como rodas e jogos de adivinhar), e muitos outros elementos da vida – temas que interessam outras áreas do conhecimento que não apenas as artes. Além disso, o enquadramento do folclore apenas às aulas de Arte pode se relacionar com a desvalorização tanto das culturas populares tradicionais quanto da disciplina. Vista por muitos como uma “aula de recreação”, em que não são trabalhados conhecimentos, ela seria o espaço perfeito para tratar o folclore, que também não se relaciona com um trabalho intelectual. Preconceito em dobro a ser quebrado.

O folclore não faz parte do universo cultural dos alunos

Da forma como o folclore é muitas vezes tratado hoje nas escolas – limitado à menção de personagens como Saci Pererê ou Curupira – talvez não se relacione ao universo cultural dos alunos. Mas, como já citado, o folclore faz parte da vida de qualquer pessoa, nem é preciso dizer que se interessar por ele é uma forma de conhecer melhor as crianças, seus familiares e a comunidade.

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